Em 1995, durante meu mestrado na UFRJ, eu participei de uma oficina literária no Centro de Letras e Artes (CLA) voltada para literatura criativa, dica do André Moura. Foi uma experiência muito interessante e me permitiu refinar meu tosco estilo e me dar um gostinho da labuta. Os outros participantes da oficina eram muito talentosos e tenho certeza que, se tiverem se dedicado à literatura, devem ser bem sucedidos hoje. No entanto, um comentário da professora (quando voltar para o Rio atualizo o post com o nome dela) ficou na minha memória. Um dia, comentando o trabalho de todos, ela comentou que sentia uma falta de fantasia no texto dos outros — todos escreviam sobre o cotidiano, sobre a realidade. O único onde ela não via esse “problema” era eu. :]
O texto abaixo foi produzido nessa oficina e trata de um mundo paralelo onde a magia retornou. Jogadores de RPG verão a óbvia influência de Shadowrun. Há semelhanças também com o filme Cast a Deadly Spell, mas não me recordo se já o havia visto nessa época.
Tenho de escrever uma longa reportagem sobre as coisas mais desgraçadas desta porca cidade e não consigo sequer passar da primeira linha. Dona Marta discute com a empregada que não trouxe as verduras tão frescas quanto imaginava, que ficou conversando horas e horas com o guarda de túnica azul e quepe branco, rindo e esquecida da vida. Seu Cláudio, o vizinho, pragueja depois de ter acertado o dedo com o martelo. E Dona Míriam, do andar de cima, reclama do elemental doméstico que ela conjurou para limpar a casa. É então que sou iluminado: não poderia escrever nada sobre a cidade de hoje sem falar algo sobre a Grande Virada de 64.
Hoje em dia tudo isso já é lugar comum, mas na época não foi bem assim. Eu era então apenas uma criança, mas aqueles eventos me marcaram profundamente. Tanto, que eu me recordo claramente deles. Depois de adulto fiquei sabendo que a coisa não foi tão repentina assim; durante os seis meses que precederam o dia D, o número de ocorrências sobrenaturais aumentou significativamente. Apesar disso, ninguém deu muita atenção; as pessoas, já naquela época, eram bastante calejadas.
Entretanto, ninguém pode deixar de perceber quando, em 29 de março de 1964, o mundo “parou”. Eu havia acordado mais cedo nesse dia, não sei exatamente porque, talvez fosse uma premonição, sei lá, por isso acabei vendo o nascer do sol – e nunca mais vou poder esquecê-lo. A aurora, normalmente vermelho-alaranjada, agora tinha tons de azul, verde e púrpura, e eles não ficavam estáticos, se mesclavam uns aos outros num espetáculo pirotécnico de proporções gigantescas. Linhas brilhantes cruzavam o céu e eu podia discernir figuras espectrais flutuando de um lado para o outro. Foi quando ouvi um grito vindo do quarto dos meus pais. Corri pra lá. A cena que vi ao entrar ficou permanentemente gravada na minha mente: minha mãe desmaiada no chão, um abajour quebrado e uma criatura vagamente humana sobre a cama. Ela, a criatura, tinha longos braços e pernas; seu corpo era todo coberto por um pelo marrom-acastanhado, sendo que havia uma concentração maior nas costas; a face parecia ter sido resultado de uma briga entre um homem e um porco, na qual o porco havia levado vantagem; e os olhos… os olhos… eu os teria reconhecido em qualquer lugar, eram os olhos do meu pai. Ele olhou para mim com um misto de vergonha, desespero e súplica e, então, pulou pela janela. Eu fiquei parado lá, extasiado demais para fazer alguma coisa, até mesmo sentir medo. Foi a última vez que vi meu pai.
Seguiram-se dias de caos: mais pessoas se transformavam em criaturas estranhas, seres mitológicos ou folclóricos surgiam do nada, a magia renascia com toda força e ninguém conseguia fazer sentido. Duas semanas se passaram até que as coisas se estabilizassem novamente. Correram boatos sobre um golpe militar, mas este nunca aconteceu e Jango terminou seu mandato sem maiores problemas. O governo fez um pronunciamento oficial tentando acalmar a população. Disseram que o Brasil não tinha sido o único país afetado, que em todo o mundo coisas similares haviam acontecido. As pessoas ficaram ainda mais desesperadas. Agora não havia escapatória, para onde quer que elas fossem estariam no meio da confusão.
Eventualmente as coisas se acertaram. Minha mãe, como muitas outras, conseguiu uma pensão da previdência que nos permitiu sobreviver. A população em geral começou a ficar maravilhada com a magia. O Brasil entrou numa fase que ficou conhecida como o “milagre brasileiro”: muito dinheiro, muito petróleo e muita magia. Foram anos incríveis.
Mas aí o dinheiro começou a diminuir. O preço do petróleo caiu em conseqüência de vários países passarem a depender mais de magia para a locomoção etc. As pessoas também começaram a se conscientizar dos aspectos negativos da magia. Os exploradores da natureza (caçadores, madeireiros etc.) agora tinham de prestar contas às inúmeras criaturas sobrenaturais que a defendiam e aos índios, que haviam readquirido seu poder de outrora graças aos pajés. Nas cidades, as pessoas agora precisavam se preocupar com outros tipos de predadores além dos ladrões, assassinos e estupradores. Havia cucas, mulas-sem-cabeça, sacis e, devido à imigração e às facilidades de locomoção internacional, lobisomens húngaros, vampiros romenos, trolls escandinavos e espíritos japoneses. Para se tornar um babalorixá ou um mago no estilo europeu era necessário muita dedicação e estudo. Se antes a chance de um trabalho de macumba lhe afetar era pouca (ou inexistente, segundo alguns), agora era certa; a não ser que você tivesse algum tipo de proteção. Só que os encantamentos e itens mágicos mais úteis eram muito caros. Em suma, a cobertura de doce da magia dava lugar ao recheio de fel.
Minha adolescência foi vivida nesse período de ânimo decrescente, mas isto não me afetou. Acho que aquela minha experiência de infância havia me fisgado por completo. Tanto que os meus amigos no colégio eram aqueles que haviam sido tocados pela magia. Aqueles que geralmente eram isolados pelos outros “mais normais”. Quando fiz o vestibular, decidi que queria uma profissão que me permitisse estar sempre perto do sobrenatural. Como não tinha muita paciência para ingressar na recém-criada Faculdade Arcana e me tornar um mago, eu optei pelo jornalismo. De modo que eu via, eu estaria sempre por dentro de tudo que acontecesse na comunidade mística, podendo aprender coisas que um praticante (isto é, um mago) talvez levasse muito mais tempo.
Nos anos 80, as coisas pioraram. Houve um ressurgimento do gótico e muita gente se voltou para a necromancia, a magia mais “carregada”, como eles dizem na gíria. Não que as pessoas não a usassem antes, mas o problema era que agora o número de praticantes tinha aumentado assustadoramente. Com isso, a quantidade de demônios, zumbis e mortos andando à solta pelas cidades se tornou insuportável. Eram assassinatos encomendados, possessões, pragas. A coisa chegou a tal ponto que a ONU organizou uma inquisição mundial.
Muita gente foi vítima dessa inquisição, ou enclausurado, ou crucificado, ou executado. Eu perdi alguns bons amigos. As atrocidades foram tantas que se chegou a questionar se a inquisição não seria tão ruim quanto o mal que eles queriam expurgar. Eu mesmo escrevi alguns artigos condenando as atrocidades cometidas em nome do “bem”. O Vaticano, que havia perdido prestígio com a Grande Virada, e, por isso, aproveitou a inquisição para reaver o seu poder, declarou que para vencer os demônios não se poderia mostrar clemência. Certa ou errada, a tática do papa deu certo e, em 1990, a situação estava sobre controle. Entretanto, as marcas deixadas na população foram consideráveis: havia um sentimento de desesperança que permeava tudo, uma entropia psicológica que só fez aumentar nos últimos anos.
Olho o relógio: 18:27. Um saxofone na distância corta o final da tarde se juntando a outros sons mais característicos de buzinas, rugidos e mantras. Cíntia me chama com aquela voz que parece o prelúdio de uma era glacial. Ela é a representação mais íntima do meu relacionamento com o mundo atual; uma mestiça, meio-humana, meio outra coisa qualquer que eu não consegui identificar até hoje. Apesar disso, ela é mais humana do que muito “puro-sangue” que eu conheço. Mas o que importa é que eu gosto muito dela e ela de mim. Respondo que ainda vou demorar um pouco.
Olho para a máquina de escrever. Essa viagem no túnel do tempo até que foi uma boa idéia. Agora já sei como começar a matéria: “Não poderia escrever nada sobre a cidade de hoje sem falar algo sobre a Grande Virada de 64”.
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