Minicontos

O Cavaleiro

Estamos no Arizona, 1864. Estou entrando num salão para matar dezesseis homens. Gente comum: ladrões, vaqueiros, bancários… Nada pessoal, apenas chegou a hora deles.

Entro no salão. Minha imagem, vestido todo de preto, do chapéu às botas, incluindo as armas, chama atenção – todos olham para mim. Ajo rapidamente: saco as pistolas e começo a atirar. Os tiros são certeiros, uma bala para cada um. Termino em menos de um minuto. Os que sobreviveram, me olham com uma mistura de espanto e medo. Dou meia-volta e saio do salão. Monto no meu cavalo pálido.

Meu trabalho nunca termina, e ainda tenho de encontrar os outros três cavaleiros…

 


 

O Caçador

Eu caço monstros para viver. O povo desta cidadezinha me contratou para acabar com um lobisomem que tem dado problemas. Consegui rastrear o bicho até um chalé abandonado na floresta, e vim todo preparado para dar cabo dele. Tenho uma carabina de cano duplo e várias balas de prata. Logo que entro, localizo o monstro. Ele está parado no meio da sala, como se estivesse me esperando. Ainda está na sua forma humana. Não perco tempo e atiro. Faço um buraco do tamanho de um punho no peito dele, mas ele não cai; ao invés disso, fica rindo. Disparo de novo. Nada. Ele dá um passo para frente, ainda rindo, e a luz da lua cheia o ilumina. Vejo então os caninos protuberantes e os olhos vermelhos. Aí me dou conta do meu erro: ele não é um lobisomem, é um vampiro.

Prata não funciona com vampiros…

Missa do galo, redux

Um dos exercícios da oficina literária da qual participei em 1995 era reescrever o conto “Missa do galo“, de Machado de Assis, do ponto de vista de outro personagem. Escolhi o vizinho que havia combinado com Nogueira de ir ao teatro com ele. Que Machado me desculpe pela afronta literária. :]

 


 

Quando estou a divagar, viajando pelas minhas recordações, encontro-me sempre a retornar a uma data específica: a missa do galo de 1862. A missa em si não é o motivo principal da recordação, apesar de tais eventos serem, na época, motivo para fortes lembranças. A pompa, a riqueza, a ostentação da corte eram embriagantes, e qualquer motivo que permitisse sorvê-las era apreciado. Era costume meu nunca perder uma celebração daquele tipo, mas não gostava de fazê-lo sem companhia. Quis o destino que naquele bendito ano estivesse eu passando por uma fase solitária da minha vida. Sim, bendito, pois verão, após o meu relato, que fui uma peça fundamental para evitar a desgraça de duas vidas.

Havia eu combinado com o jovem Nogueira, um quase-parente do meu vizinho, o escrivão Menezes, de irmos juntos à missa. O combinado era que ele viria a minha casa por volta da meia-noite para me acordar e, então, iríamos à igreja. Fui deitar-me tranquilo, seguro de que à meia-noite o jovem estaria a minha porta.

Acordei subitamente ao ouvir as batidas soturnas do carrilhão de papai, único legado deixado por ele a mim. Era meia-noite e nem sinal do Nogueira. Fiquei preocupado. Poderia algo ter lhe acontecido no curto percurso entre a casa do Menezes e a minha? Não, estava exagerando. Provavelmente havia se entretido com algum livro e perdido a hora. Resolvi então ir chamá-lo. Me vesti tão rápido quanto pude, pois o tempo urgia, e segui para a casa do Menezes.

Ao chegar, vi as janelas fechadas, como era de se esperar dado o adiantado da hora e decidi bater. Porém, antes que fizesse algum som, ouvi vozes que vinham de dentro da casa. Eram duas, uma feminina e uma masculina. A mulher era, sem dúvida, D. Conceição, a mulher de Menezes; nós costumávamos chamá-la de “santa”, tal sua passividade e calma. Mas o que estaria ela fazendo acordada a tal hora? O homem, reconheci logo, era Nogueira. Os dois pareciam estar conversando. Não sei descrever o que me acometeu naquela hora, mas senti uma necessidade incontrolável de ficar ali escutando.

Nunca tive atitude mais sensata. À primeira vista a conversa parecia ser inocente, mas para um homem calejado pela vida como eu, era fácil notar as insinuações entrelaçadas nela. Nogueira, coitado, não devia ter idéia do que estava se passando ali, afinal, tinha apenas dezessete anos. Para mim, no entanto, era claro que ali estava a se formar o embrião de um adultério. Engendrado por Conceição. “Santa”, pois sim! Só se fosse do pau-oco! Não que eu seja um hipócrita, entenda-me, sei que há a necessidade do homem procurar conforto no seio de várias mulheres, e Nogueira tinha o direito de ter esta oportunidade. O problema era que Menezes não era um homem de temperamento fácil, e eu temia que, se descobrisse o caso, cometesse uma desgraça. Nogueira era muito jovem ainda para ter este tipo de problema.

Percebi, neste momento, que haviam parado de conversar. Um silêncio opressor tinha se instaurado. A calmaria antes da tempestade! Sabia que aquele era o momento de intervir. Se hesitasse, tudo estaria perdido! Bati fortemente na janela e bradei “Missa do galo! Missa do galo!” Repeti uma vez mais, sossegando apenas quando vi o jovem sair pela porta.

Durante a missa, foi fácil notar que Nogueira não estava presente, pelo menos em espírito. Mais uma prova de que, se não tivesse intervindo, o feitiço haveria se completado.

Hoje, anos depois, recordo deste fato como sendo uma das boas ações da minha vida. Uma que, se o Todo-Poderoso desejar, me valerá um lugar, ainda que pequeno, em Seu reino. Sim, porque Nogueira seguiu sua vida e veio a se tornar um advogado famoso e Conceição acabou se casando de novo, após a morte de Menezes. Talvez isto não acontecesse, não tivesse eu interferido.

A grande virada

Em 1995, durante meu mestrado na UFRJ, eu participei de uma oficina literária no Centro de Letras e Artes (CLA) voltada para literatura criativa, dica do André Moura. Foi uma experiência muito interessante e me permitiu refinar meu tosco estilo e me dar um gostinho da labuta. Os outros participantes da oficina eram muito talentosos e tenho certeza que, se tiverem se dedicado à literatura, devem ser bem sucedidos hoje. No entanto, um comentário da professora (quando voltar para o Rio atualizo o post com o nome dela) ficou na minha memória. Um dia, comentando o trabalho de todos, ela comentou que sentia uma falta de fantasia no texto dos outros — todos escreviam sobre o cotidiano, sobre a realidade.  O único onde ela não via esse “problema” era eu. :]

O texto abaixo foi produzido nessa oficina e trata de um mundo paralelo onde a magia retornou. Jogadores de RPG verão a óbvia influência de Shadowrun. Há semelhanças também com o filme Cast a Deadly Spell, mas não me recordo se já o havia visto nessa época.

Tenho de escrever uma longa reportagem sobre as coisas mais desgraçadas desta porca cidade e não consigo sequer passar da primeira linha. Dona Marta discute com a empregada que não trouxe as verduras tão frescas quanto imaginava, que ficou conversando horas e horas com o guarda de túnica azul e quepe branco, rindo e esquecida da vida. Seu Cláudio, o vizinho, pragueja depois de ter acertado o dedo com o martelo. E Dona Míriam, do andar de cima, reclama do elemental doméstico que ela conjurou para limpar a casa. É então que sou iluminado: não poderia escrever nada sobre a cidade de hoje sem falar algo sobre a Grande Virada de 64.

Hoje em dia tudo isso já é lugar comum, mas na época não foi bem assim. Eu era então apenas uma criança, mas aqueles eventos me marcaram profundamente. Tanto, que eu me recordo claramente deles. Depois de adulto fiquei sabendo que a coisa não foi tão repentina assim; durante os seis meses que precederam o dia D, o número de ocorrências sobrenaturais aumentou significativamente. Apesar disso, ninguém deu muita atenção; as pessoas, já naquela época, eram bastante calejadas.

Entretanto, ninguém pode deixar de perceber quando, em 29 de março de 1964, o mundo “parou”. Eu havia acordado mais cedo nesse dia, não sei exatamente porque, talvez fosse uma premonição, sei lá, por isso acabei vendo o nascer do sol – e nunca mais vou poder esquecê-lo. A aurora, normalmente vermelho-alaranjada, agora tinha tons de azul, verde e púrpura, e eles não ficavam estáticos, se mesclavam uns aos outros num espetáculo pirotécnico de proporções gigantescas. Linhas brilhantes cruzavam o céu e eu podia discernir figuras espectrais flutuando de um lado para o outro. Foi quando ouvi um grito vindo do quarto dos meus pais. Corri pra lá. A cena que vi ao entrar ficou permanentemente gravada na minha mente: minha mãe desmaiada no chão, um abajour quebrado e uma criatura vagamente humana sobre a cama. Ela, a criatura, tinha longos braços e pernas; seu corpo era todo coberto por um pelo marrom-acastanhado, sendo que havia uma concentração maior nas costas; a face parecia ter sido resultado de uma briga entre um homem e um porco, na qual o porco havia levado vantagem; e os olhos… os olhos… eu os teria reconhecido em qualquer lugar, eram os olhos do meu pai. Ele olhou para mim com um misto de vergonha, desespero e súplica e, então, pulou pela janela. Eu fiquei parado lá, extasiado demais para fazer alguma coisa, até mesmo sentir medo. Foi a última vez que vi meu pai.

Seguiram-se dias de caos: mais pessoas se transformavam em criaturas estranhas, seres mitológicos ou folclóricos surgiam do nada, a magia renascia com toda força e ninguém conseguia fazer sentido. Duas semanas se passaram até que as coisas se estabilizassem novamente. Correram boatos sobre um golpe militar, mas este nunca aconteceu e Jango terminou seu mandato sem maiores problemas. O governo fez um pronunciamento oficial tentando acalmar a população. Disseram que o Brasil não tinha sido o único país afetado, que em todo o mundo coisas similares haviam acontecido. As pessoas ficaram ainda mais desesperadas. Agora não havia escapatória, para onde quer que elas fossem estariam no meio da confusão.

Eventualmente as coisas se acertaram. Minha mãe, como muitas outras, conseguiu uma pensão da previdência que nos permitiu sobreviver. A população em geral começou a ficar maravilhada com a magia. O Brasil entrou numa fase que ficou conhecida como o “milagre brasileiro”: muito dinheiro, muito petróleo e muita magia. Foram anos incríveis.

Mas aí o dinheiro começou a diminuir. O preço do petróleo caiu em conseqüência de vários países passarem a depender mais de magia para a locomoção etc. As pessoas também começaram a se conscientizar dos aspectos negativos da magia. Os exploradores da natureza (caçadores, madeireiros etc.) agora tinham de prestar contas às inúmeras criaturas sobrenaturais que a defendiam e aos índios, que haviam readquirido seu poder de outrora graças aos pajés. Nas cidades, as pessoas agora precisavam se preocupar com outros tipos de predadores além dos ladrões, assassinos e estupradores. Havia cucas, mulas-sem-cabeça, sacis e, devido à imigração e às facilidades de locomoção internacional, lobisomens húngaros, vampiros romenos, trolls escandinavos e espíritos japoneses. Para se tornar um babalorixá ou um mago no estilo europeu era necessário muita dedicação e estudo. Se antes a chance de um trabalho de macumba lhe afetar era pouca (ou inexistente, segundo alguns), agora era certa; a não ser que você tivesse algum tipo de proteção. Só que os encantamentos e itens mágicos mais úteis eram muito caros. Em suma, a cobertura de doce da magia dava lugar ao recheio de fel.

Minha adolescência foi vivida nesse período de ânimo decrescente, mas isto não me afetou. Acho que aquela minha experiência de infância havia me fisgado por completo. Tanto que os meus amigos no colégio eram aqueles que haviam sido tocados pela magia. Aqueles que geralmente eram isolados pelos outros “mais normais”. Quando fiz o vestibular, decidi que queria uma profissão que me permitisse estar sempre perto do sobrenatural. Como não tinha muita paciência para ingressar na recém-criada Faculdade Arcana e me tornar um mago, eu optei pelo jornalismo. De modo que eu via, eu estaria sempre por dentro de tudo que acontecesse na comunidade mística, podendo aprender coisas que um praticante (isto é, um mago) talvez levasse muito mais tempo.

Nos anos 80, as coisas pioraram. Houve um ressurgimento do gótico e muita gente se voltou para a necromancia, a magia mais “carregada”, como eles dizem na gíria. Não que as pessoas não a usassem antes, mas o problema era que agora o número de praticantes tinha aumentado assustadoramente. Com isso, a quantidade de demônios, zumbis e mortos andando à solta pelas cidades se tornou insuportável. Eram assassinatos encomendados, possessões, pragas. A coisa chegou a tal ponto que a ONU organizou uma inquisição mundial.

Muita gente foi vítima dessa inquisição, ou enclausurado, ou crucificado, ou executado. Eu perdi alguns bons amigos. As atrocidades foram tantas que se chegou a questionar se a inquisição não seria tão ruim quanto o mal que eles queriam expurgar. Eu mesmo escrevi alguns artigos condenando as atrocidades cometidas em nome do “bem”. O Vaticano, que havia perdido prestígio com a Grande Virada, e, por isso, aproveitou a inquisição para reaver o seu poder, declarou que para vencer os demônios não se poderia mostrar clemência. Certa ou errada, a tática do papa deu certo e, em 1990, a situação estava sobre controle. Entretanto, as marcas deixadas na população foram consideráveis: havia um sentimento de desesperança que permeava tudo, uma entropia psicológica que só fez aumentar nos últimos anos.

Olho o relógio: 18:27. Um saxofone na distância corta o final da tarde se juntando a outros sons mais característicos de buzinas, rugidos e mantras. Cíntia me chama com aquela voz que parece o prelúdio de uma era glacial. Ela é a representação mais íntima do meu relacionamento com o mundo atual; uma mestiça, meio-humana, meio outra coisa qualquer que eu não consegui identificar até hoje. Apesar disso, ela é mais humana do que muito “puro-sangue” que eu conheço. Mas o que importa é que eu gosto muito dela e ela de mim. Respondo que ainda vou demorar um pouco.

Olho para a máquina de escrever. Essa viagem no túnel do tempo até que foi uma boa idéia. Agora já sei como começar a matéria: “Não poderia escrever nada sobre a cidade de hoje sem falar algo sobre a Grande Virada de 64”.

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