Um dos exercícios da oficina literária da qual participei em 1995 era reescrever o conto “Missa do galo“, de Machado de Assis, do ponto de vista de outro personagem. Escolhi o vizinho que havia combinado com Nogueira de ir ao teatro com ele. Que Machado me desculpe pela afronta literária. :]
Quando estou a divagar, viajando pelas minhas recordações, encontro-me sempre a retornar a uma data específica: a missa do galo de 1862. A missa em si não é o motivo principal da recordação, apesar de tais eventos serem, na época, motivo para fortes lembranças. A pompa, a riqueza, a ostentação da corte eram embriagantes, e qualquer motivo que permitisse sorvê-las era apreciado. Era costume meu nunca perder uma celebração daquele tipo, mas não gostava de fazê-lo sem companhia. Quis o destino que naquele bendito ano estivesse eu passando por uma fase solitária da minha vida. Sim, bendito, pois verão, após o meu relato, que fui uma peça fundamental para evitar a desgraça de duas vidas.
Havia eu combinado com o jovem Nogueira, um quase-parente do meu vizinho, o escrivão Menezes, de irmos juntos à missa. O combinado era que ele viria a minha casa por volta da meia-noite para me acordar e, então, iríamos à igreja. Fui deitar-me tranquilo, seguro de que à meia-noite o jovem estaria a minha porta.
Acordei subitamente ao ouvir as batidas soturnas do carrilhão de papai, único legado deixado por ele a mim. Era meia-noite e nem sinal do Nogueira. Fiquei preocupado. Poderia algo ter lhe acontecido no curto percurso entre a casa do Menezes e a minha? Não, estava exagerando. Provavelmente havia se entretido com algum livro e perdido a hora. Resolvi então ir chamá-lo. Me vesti tão rápido quanto pude, pois o tempo urgia, e segui para a casa do Menezes.
Ao chegar, vi as janelas fechadas, como era de se esperar dado o adiantado da hora e decidi bater. Porém, antes que fizesse algum som, ouvi vozes que vinham de dentro da casa. Eram duas, uma feminina e uma masculina. A mulher era, sem dúvida, D. Conceição, a mulher de Menezes; nós costumávamos chamá-la de “santa”, tal sua passividade e calma. Mas o que estaria ela fazendo acordada a tal hora? O homem, reconheci logo, era Nogueira. Os dois pareciam estar conversando. Não sei descrever o que me acometeu naquela hora, mas senti uma necessidade incontrolável de ficar ali escutando.
Nunca tive atitude mais sensata. À primeira vista a conversa parecia ser inocente, mas para um homem calejado pela vida como eu, era fácil notar as insinuações entrelaçadas nela. Nogueira, coitado, não devia ter idéia do que estava se passando ali, afinal, tinha apenas dezessete anos. Para mim, no entanto, era claro que ali estava a se formar o embrião de um adultério. Engendrado por Conceição. “Santa”, pois sim! Só se fosse do pau-oco! Não que eu seja um hipócrita, entenda-me, sei que há a necessidade do homem procurar conforto no seio de várias mulheres, e Nogueira tinha o direito de ter esta oportunidade. O problema era que Menezes não era um homem de temperamento fácil, e eu temia que, se descobrisse o caso, cometesse uma desgraça. Nogueira era muito jovem ainda para ter este tipo de problema.
Percebi, neste momento, que haviam parado de conversar. Um silêncio opressor tinha se instaurado. A calmaria antes da tempestade! Sabia que aquele era o momento de intervir. Se hesitasse, tudo estaria perdido! Bati fortemente na janela e bradei “Missa do galo! Missa do galo!” Repeti uma vez mais, sossegando apenas quando vi o jovem sair pela porta.
Durante a missa, foi fácil notar que Nogueira não estava presente, pelo menos em espírito. Mais uma prova de que, se não tivesse intervindo, o feitiço haveria se completado.
Hoje, anos depois, recordo deste fato como sendo uma das boas ações da minha vida. Uma que, se o Todo-Poderoso desejar, me valerá um lugar, ainda que pequeno, em Seu reino. Sim, porque Nogueira seguiu sua vida e veio a se tornar um advogado famoso e Conceição acabou se casando de novo, após a morte de Menezes. Talvez isto não acontecesse, não tivesse eu interferido.
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